DESENCARNE DE ALLAN KARDEC
DESENCARNE DE ALLAN KARDEC
Paris, 31 de Março de 1869.
Amigos:
Ele
morreu esta manhã, entre onze e doze horas, subitamente, ao entregar um
número da “Revue” a um caixeiro de livraria que acabava de comprá-lo;
Curvou-se sobre si mesmo, sem proferir uma única palavra. Estava morto.
Sozinho
em sua casa (rua de Sant’Anna), Kardec punha em ordem livros e papéis
para a mudança que se vinha processando e que deveria terminar amanhã.
Seu empregado, aos gritos da criada e do caixeiro, correu ao local,
ergueu-o... nada, nada mais. Delanne acudiu com toda a presteza,
friccionou-o, magnetizou-o, mas em vão. Tudo estava acabado...
Precisamente
ao meio dia de 2 de abril de 1869, modesto coche funerário, seguido
pelos confrades mais íntimos, por todos os membros e médiuns da
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, e por uma multidão de amigos e
simpatizantes, ao todo, mil a mil e duzentas pessoas punham-se em
marcha, rumo ao Cemitério Montmartre, o mais antigo de Paris, onde nova
massa popular já se encontrava concentrada.
As despedidas:
Em
nome da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que fora fundada e
dirigida por Allan Kardec, discursou junto à cova ainda aberta, seu
vice-presidente, Sr. Levent. Achava desnecessário recordar a fisionomia
ao mesmo tempo benevolente e austera, o tato perfeito, a justeza de
apreciação, a lógica superior incomparável do mestre. Refere-se, a
seguir, os labores contínuos do infatigável pensador, que sempre
madrugava no gabinete de trabalho, e diz da sua vasta correspondência
com as quatro partes do mundo.
Lastimando
a partida de Kardec, o orador logo em seguida se consola com este
pensamento tantas vezes lembrado pelo extinto presidente: “Nada é inútil
na natureza; tudo tem a sua razão de ser, e o que Deus faz é sempre bem
feito.”
A fala de Camille Flammarion:
Depois
que o Sr. Levent fez a prece junto à tumba de Kardec, tomou a palavra, o
sábio astrônomo Camille Flammarion, numa oratória brilhantíssima que
magnetizou por cerca de meia hora, todas as pessoas presentes ao
sepultamento, das mais altas classes sociais, às mais humildes.
Lembrando
o “eminente serviço” que Allan Kardec “prestou a filosofia, com chamar a
atenção e provocar discussões sobre fatos que até então pertenciam ao
domínio mórbido e funesto das superstições religiosas”, o celebrado
autor da “Astronomia Popular” acrescentava:
“Seria,
com efeito, um ato importante firmar aqui, junto deste túmulo
eloqüente, que o metódico exame dos fenômenos, erroneamente qualificados
de supranormais, longe de renovar o espírito de superstição e de
enfraquecer a energia da razão, afasta, ao contrário, os erros e as
ilusões da ignorância e serve melhor ao progresso, do que as negações
ilegítimas dos que não querem dar-se ao trabalho de ver.”
Rendendo
a sua homenagem à memória do “pensador laborioso”, Flammarion traça-lhe
as principais fases da vida terrena, “tão útil e tão dignamente
preenchida” – acentuava ele.
Mais adiante, ainda exaltando a figura do querido extinto, o orador consignava para a posteridade:
“Ele
era o que eu denominarei simplesmente o bom senso encarnado. Razão reta
e judiciosa, aplicava sem cessar à sua obra permanente as indicações
íntimas do senso comum. Não era essa uma qualidade somenos, na ordem das
coisas com que nos ocupamos. Era, ao contrário, pode-se afirma-lo, a
primeira de todas e a mais preciosa, sem a qual, a obra não teria podido
tornar-se popular, nem lançar pelo mundo suas raízes imensas.”
Flammarion
faz, a seguir, inteligente exposição científico-filosófica que
corrobora as doutrinas reveladas pelo espiritismo, apresentando o quadro
das metamorfoses em “A Natureza”, dentro do qual resulta que a
existência e a imortalidade da alma se revelam pelas mesmas leis da
vida.
Após
recordar as conversações que ele amiúde mantinha com Allan Kardec,
quanto à vida espiritual e a pluralidade dos mundos habitados, o ilustre
astrônomo francês assim terminava seu eloqüente discurso:
“Aos
nossos pés dorme o teu envoltório, extinguiu-se o teu cérebro,
fecharam-se-te os olhos para não mais se abrirem, não mais ouvida será a
tua palavra... Sabemos que todos havemos de mergulhar nesse último
sono, de volver a essa mesma inércia, a esse mesmo pó. Mas, não é nesse
envoltório que pomos a nossa glória e a nossa esperança. Tomba o corpo, a
alma permanece e retorna ao espaço. Encontrar-nos-emos num mundo
melhor, e no céu imenso, onde usaremos das nossas mais preciosas
faculdades, continuaremos os estudos para cujo desenvolvimento a Terra é
teatro por demais acanhado.
É-nos
mais grato saber esta verdade, do que acreditar que jazes todo inteiro
neste cadáver e que tua alma se haja aniquilado com a cessação do
funcionamento de um órgão. A imortalidade é a luz da vida, como este
refulgente Sol é a luz da Natureza.
Até à vista, meu caro Allan Kardec. Até à vista!”
Assim,
Flammarion encerra seu discurso diante do corpo inerte de Allan Kardec,
e das centenas de companheiros presentes para as despedidas ao
codificador da Doutrina Espírita.
Do livro Obras Póstumas - Allan Kardec
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